
Há um filme brasileiro em cartaz, um documentário, que talvez não fique nos cinemas por muito tempo.
Tem o nome de um livro precioso,”O Renascimento do Parto”, do obstetra francês Michel Odent.
Tenho muitos degraus a percorrer na escadaria da cultura para poder tecer comparações entre filmes e livros, mas não é incomum ouvirmos de fãs de determinado assunto que “o livro é melhor do que o filme”. Talvez porque as páginas ofereçam mais espaço que as fitas e os interessados possam sorver mais detalhes nos livros do que nas telas… Ou não. Pode ser ingenuidade achar que o “espaço” é a questão.
O livro “O Renascimento do Parto” é altamente recomendável. Publicado originalmente em 1993, foi editado no Brasil em 2002. Encontra-se esgotado, não só nas livrarias como nos sebos virtuais… como muitos dos outros títulos do autor. Quem sabe o filme é a deixa para que seja reeditado?
Odent é um pioneiro. Vê há décadas, em cenas reais, a confirmação das conclusões a que ele e a ciência chegam com a evolução das pesquisas. É um cidadão do mundo, generoso, paciente, valoriza a mais simples das perguntas e responde redimensionando-a. Quem conhecer o início de sua despretensiosa história profissional (e o livro a traz) desejará para si descobrir a vocação assim, na lida diária, por acaso. Nada é ao acaso…
O livro fala sobre a experiência de transformação numa maternidade de uma cidadezinha a 100 Km de Paris com a chegada do Dr. Odent, então cirurgião geral, ocorrida em 1962. As maravilhas que lá vão ocorrendo, com o respeito à fisiologia do parto e às necessidades básicas das mulheres em trabalho de parto, são retratadas com relatos, fotografias, depoimentos de profissionais, de mães, de pais. Os índices de “saúde” (para simplificar os critérios) lá obtidos são extremamente desejáveis.
Hoje, neste hospital de Pithiviers, a realidade de assistência obstétrica não é mais aquela. A tecnocracia invadiu boa parte do mundo… E assim pulamos para o Brasil, paisão de mil realidades e contrastes, no qual os índices do Ministério da Saúde indicam que mais da metade do total de nascimentos ocorre por via cirúrgica… E assim pulamos para o filme.
Que fala muitas verdades incríveis. Que diz com todas as letras que o sistema assume práticas autoritativas, arbitrárias – porém consagradas – da medicina. Que traz depoimentos reais de mulheres enganadas num momento tão vulnerável de suas vidas. Que traz informações científicas de alto nível, na fala de profissionais diferenciados, destacados num cenário em que o comum é a vocação ser submetida ao capitalismo e suprimida pela produção operacional. Havemos de nos lembrar que vidas não são produtos. A isso, o filme nos ajuda.
Porém, as declarações que Michel Odent dá ali, sentado à beira mar, distribuindo conhecimento e serenidade diante do caos, são pouco. São preciosas, mas são recortes tímidos e direcionados do que ele diz “além filme”. Pudera: Odent constatou em sua prática e em sua obra que, por exemplo, uma necessidade essencial da mulher em trabalho de parto é a privacidade. Mas o filme não pôde fazer como as novelas de antigamente – e apagar as luzes no início de uma noite de amor, retornando em seguida com a mesma bela música e uma tomada do casal abraçado ao amanhecer… O filme precisou compactuar com a tendência de filmar bem filmadinho e exibir bem exibidinho o nascimento do bebê…
Ok! Confesso! Chorei de soluçar cinco ou seis vezes com essas cenas, cuja presença no filme acabei de criticar azedamente. Cenas lindas, comoventes, tocantes, porque são cenas de encontro. De encontro amoroso entre pessoas que tanto se esperam e que, separadas pela primeira vez, nunca mais se separarão. Recebendo uma à outra com toda a inteireza que permite um nascimento digno, em que fica claro a quem pertence o momento. Por estas cenas, o filme vale a pena.
Por outro lado, me contorci, rosto e corpo, vendo a faca cortar a carne. Arrepios, repulsa. Cenas fortíssimas de cirugias cesarianas, de chegadas violentas a este mundo… Dor. E isto muito me provocou: a dicotomia cesárea x parto vaginal foi bastante marcada no documentário. Como se não existissem partos vaginais terríveis, cheios de intervenções desnecessárias e invasivas, cursando com desamparo, medo, violência. E como se não existissem cesáreas respeitosas, bem indicadas, valiosas para salvar vidas, do alto da qualidade técnica que esta cirurgia de grande porte pode ter nos dias atuais.
Talvez o problema seja muito mais relativo aos protocolos do que à via de nascimento. A Organização Mundial da Saúde afirma que até 15% dos nascimentos possam ter necessidade de ocorrer por via cirúrgica. Estimar peso do bebê, estimar velocidade de dilatação, estimar abertura da bacia, estimar tempo de trabalho de parto, estimar idade gestacional… estimar (por métodos infalíveis como ultrassonografia – quem nunca recebeu nos braços um bebê de peso diferente do estimado no último exame?) e intervir. Na contramão de observar, acompanhar, verificar e, nos casos de necessidade – comprovada pelo bom uso da tecnologia e pelo bom uso da experiência – apenas e em todos os casos de necessidade, intervir.
Michel Odent atualmente levanta a grande diferenciação entre nascimentos nos quais a mulher pode produzir o coquetel hormonal específico de forma fisiológica (parto natural) e nascimentos em que não pode (cirurgias antes de trabalho de parto ativo ou partos nos quais tenham sido usadas drogas como ocitocina sintética e as anestésicas). O filme não dá a esta fala mais valor do que à dicotomia cesárea x parto natural. E, assim, pode reforçar o senso comum errôneo de que quem “defende” o parto normal insistiria nele como única alternativa, a despeito de situações que requerem outras providências.
O ideal, escreve Odent, é proporcionar condições adequadas para que o parto ocorra de forma fácil e segura. E estas condições pouco têm a ver com tecnologia ou com estética e muito têm a ver com privacidade, sensação de segurança e proteção, ausência de linguagem racional, baixa luminosidade, temperatura confortável. Pena precisarmos de um outro filme para destacar isso…
Esta semana, viajando quilômetros até o cinema, tomando metrô em horário de rush, aguentando a dureza de estar ali desacompanhada (como tantas vezes me sinto ao tratar desse assunto), sentei na poltrona de frente para a tela e senti – coisa rara e estranha! – que estava prestes a realizar um sonho. Voltando de lá, percebo que talvez o sonho fique tão bem realizado lendo um bom livro de Michel Odent debaixo das cobertas!
Deixo meu convite para irem ao cinema, lerem um bom livro e tirarem suas próprias conclusões.